AUTOBIOGRAFIA

A extensa e profunda tristeza dos oceanos.
A sua solidão irrevogável.
Os barcos, inaudíveis ou desconexos,
sem rumo nem rota,
mercantis,
que lhes arranham as águas.
As praias e os portos em que morrem
ou que só em fúrias terríveis atravessam,
varrendo as ruas em que os marinheiros passeiam
conversando com prostitutas, missionários, prestamistas
e oficiais de outras aleivosias.
Como os invejam, os imensos oceanos!
Belos, misteriosos, devastadores, eternos,
trocavam tudo pela pequenez de um charco
com rãs mortas e um hálito a cem dias.
Qualquer coisa assim, menos a massa enorme
em que assentam sobre si e se evapora,
só para lhes retornar vezes sem conta.
Qualquer coisa, menos a fricção irmanada com o vento
e com os leitos rugosos de pedras em ruínas,
que não os deixam dormir à superfície
nem estar a sós no fundo de si mesmos.
Não ouvem as sereias e menos imaginam
o crepitar dos galhos de árvore selva adentro,
as luzes das cidades chegam-lhes através de uma insuportável miopia
e dos cães só conhecem os cadáveres.
É triste a sua sina, esmagadora,
o destino do que é demasiado e plúmbeo
e límpido e imundo em alternância.
É uma crueldade indescritível
ora envolver corais alaranjados
como placenta ascética de um futuro mais simples,
ora sentir rebentarem as entranhas
de um contra-tropedeiro e, junto, as suas.
Ó Mar de Aral, evoco-te onde foste,
para te dizer que junto a Punta Arenas,
o mar de sonho que me chorou nos olhos,
num postal sem lembranças nem destino,
inveja-te
como as crianças os ilusionistas.

Miguel Martins

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