(Dornes, Maio 2011)

Gostaria de descrever

gostaria de descrever a emoção mais simples
alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
procurando chegar a dardos de chuva ou sol

gostaria de descrever a luz
que está a nascer em mim
mas sei que não se parece
com nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é inconstante

gostaria de descrever a coragem
sem arrastar atrás de mim um leão poeirento
e também a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dizendo de outra maneira
daria todas as metáforas
em troca de uma palavra
arrancada do meu peito como uma costela
por uma palavra
contida dentro dos limites
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer — eu amo
corro em círculos como um louco
apanhando mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que afinal de contas não é feita de água
pergunta à água por um rosto


e a ira
diferente do fogo
pede-lhe emprestada
uma língua loquaz

tudo tão emaranhado
tudo tão emaranhado
em mim
que o senhor de cabelo branco
desfez o emaranhado de uma vez por todas
e disse este é o sujeito
e este é o complemento

adormecemos
com uma mão debaixo da cabeça
e com a outra
num aterro de planetas


os nossos pés abandonam-nos
e tocam a terra
com as suas raízes minúsculas
que de manhã
arrancamos dolorosamente

Zbigniew Herbert
ELOGIO DOS SONHOS

(Dornes, Maio 2011)


Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente
e não só com os vivos.

Dirijo um carro
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.

Faz alguns anos
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim.
Com toda a clareza.

WISLAWA SZYMBORSKA

Ontem lá em baixo no canal



Dizes que tudo é muito simples e interessante
isso torna-me muito melancólico, como se lesse um grande romance Russo
estou tão aborrecido
é quase como ver um mau filme
se não for, mais frequentemente, como ter uma doença aguda no rim
valha-nos deus que não é nada no coração
nada relacionado com gente mais interessante do que eu
yak yak
que pensamento divertido
como pode alguém ser mais divertido do que o próprio
como pode alguém não ser
podes emprestar-me o teu quarenta e cinco
só preciso de uma bala de preferência de prata
se não se pode ser interessante pelo menos que se seja uma lenda
(mas odeio essa trampa toda)


Frank O'Hara

BROTHERS ON WHEELS




Viajas um pouco acima
da fixa viagem
da terra, eu sou
o teu amigo, o irmão
que nunca saiu
e regressou.
Mar e mãe se enredavam
por coisas de sangue
e confronto, presos animais
de fumo e noite.
E motores ao corpo
dos heróis, depressa
passam, facas
na pele ardendo.
Eu visto
as tuas camisolas
e a vida que viveste
já a tenho. Quero
que o teu murmúrio
me perturbe, a voz
é um ponteiro
sobre o tempo, os peixes
não deixam de bater
nos vidros.




HELDER MOURA PEREIRA
Não. Não há pão para a fome que o amor fabrica, não há perdão. Descansa, então. Primeiro as pernas para as levar à boca, a erva doce, a lã rugosa e húmida, o seu grão minúsculo. Depois a língua como um junco, os dedos miúdos.
 Aflore-se a música, não vá a tua fonte dormir, o sol para entrar até tarde, para o gosto não ruir, os olhos contra as pálpebras, o sangue inflamado.

Eduardo White


Possuo apenas 35 cêntimos, é tão inconsequente comer!

Frank O'Hara

outro verão

(...)

um pedacinho do ar
azul do verão regressará
quando o vapor gargalhar
na afronta fumegante do monstro

e serei feliz aqui e ali, saciado
de chá e lágrimas. Suponho que nunca alcançarei
a Itália, mas pelo menos tenho a tundra terrível.

Frank O'Hara

Inesperado



If you go away
On this summer's day
Then you might as well
Take the sun away
All the birds that flew
In the summer sky
When our love was new
And our hearts were high
And the day was young
And the nights were long
And the moon stood still
For the night bird's song

If you go away
If you go away
If you go away...

But if you stay
I'll make you a day
Like no day has been
Or will be again
We'll sail on the sun
We'll ride on the rain
And talk to the trees
And worship the wind

(...)

BREVE PASSAGEM PELO FOGO Apresentação Sáb, 17h30 - Bar A Barraca

O 'lugar onde' é sempre dentro de nós.

Dá-me um poema


Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.

Malcolm Lowry
(in As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar,
Assírio & Alvim
trad. José Agostinho Baptista)


tivesse ainda tempo e entregava-te o coração
(josé tolentino de mendonça)
POEMA

Tu escolhes o lugar da ferida
em que dizemos o nosso silêncio.
Tu fazes da minha vida
esta cerimónia demasiado pura.

Alejandra Pizarnik
Amo-te, ó lei mais suave,
na qual amadurecemos, quando com ela em luta estávamos;
ó grande saudade que não dominámos,
ó floresta da qual nunca saída encontrámos,
ó canção que em cada silêncio cantámos,
ó rede de obscuridade,
em que nossos sentimentos presos abrigávamos.


Tão infinitamente grande te começaste,
naquele dia em que nos começaste,
e tanto amadurecemos nos sóis de tuas horas,
tanto nos alargámos e nos plantámos profundamente,
que em Homens, Anjos e Nossas Senhoras
agora te podes cumprir descansadamente.


Deixa a tua mão na encosta dos céus pousar
e tolera em silêncio o que te estamos na sombra a preparar.


Rainer Maria Rilke