Cerimónia de Vassalagem

Quero contar isto:
A aldeia está destruída.
Um vassalo dedicadíssimo um dia faz sobreuso dos seus poderes - usa recursos que não tem ao seu alcance - os gregos chamar-lhe-iam a Hybris, o mais próximo de uma ousadia fadada ao terror.
Esse vassalo percebe tardiamente como ajudou a destruir a aldeia, os bens, as casas, as mulheres, as crianças.
Recolhe-se. Fidelidade e trabalho não reconstroem a aldeia.
Nas cerimónias de vassalagem, ajoelhava-se, recolocava as suas mãos entre as do senhor - imissio in manus - mas não chegava.
Jurava-lhe lealdade e era tarde. Fidelidade e era impossível.
As terras, as pontes, os equipamentos agrícolas...o uso da fonte de água - parado.
Fecha-se. Trabalha em silêncio. Pede perdão, no nojo diário, para a aldeia, para si...cumpre o seu trabalho sem esperar recompensa. Desdobra os dias pensando na aldeia destruída e em como reerguê-la.
Um dia o suserano vem - não cobra o apoio militar, não pede ajuda, não quer
hospedagem e traz oferendas! Despojado, esquecendo hierarquias de Mal e Bem,
vem com iguarias quentes e aceitando unir-se ao vassalo para reconstruir o feudo - entenda-se: lugar cimeiro e intocável.
Todos os dias atravessa a ponte traz bens, alimentos e duas mãos onde o vassalo pode secretamente prestar a sua vassalagem em silêncio e união. Uma vassalagem secreta, de reconstrução. Que lhe permita a vida de novo. A entrada na aldeia.
Como se o escravo estivesse na sua cela, nuns dias sem principio nem fim, e fosse visitado, porque escolhido, pelo seu amo - que lhe traz vida e calor, comida e calor, apaziguamento e calor - como que visitado por algo maior que inverte as leis e as permite lhanas e plenas no coração dos homens -
sem tempo para trás e uma luz finíssima para a frente.
O escravo é visitado pelo senhor, nutrido, cuidado, relembrado do mal que fez e no entanto bem tratado...sem nenhum grilhão - mãos, pés, boca e coração livres - depois de cada visita, de cada cerimónia de reconstrução.
O escravo vai recuperando, curando as maleitas e os achaques desvitaminados desta clausura - o amo parte e o escravo revê o mal que fez pelo bem que recebe. A cara é espancada docemente, acariciada pelo ensinamento da mão enluvada do amo.
O escravo recupera. Agradece. Meu deus, como agradece!
O escravo é uma escrava e a aldeia talvez se possa reconstruir.

Sei que isto já aconteceu. Though I know of it's rarity.


Latifúndio e Mão de Obra 


O mesmo escravo ouviu falar de latifúndios - terra livre e abundante - um pouco mais ao norte, um pouco mais ao centro do seu corpo em défice.
Logo se preparou - a promessa de um latifúndio, que se construísse devagarinho...bem dividido, organizado, como num mapa medievo, o cavalo à direita da casa, com o alforge carregado para a intempérie, a carroça com lenha ao lado do celeiro, o caminho alinhavado por pedras e pequenos arbustos silenciosos...um latifúndio, sem promessa de mundos e fundos - um latifúndio amplo e verdejante, justificação para o locus amenus...com que o escravo sonhara.
Trabalhos forçados nos campos, não tinha conhecimento, por isso lhe parecia isso de uma extrema inexactidão.
Tinha o direito de arrendar e recebia em troca protecção (e tantas tantas outras coisas). Não percebia como podiam ser trabalhos forçados...eram coisas da silvicultura, da agricultura, do transporte por terra ou por rio, obrigações com o artesanato, a manufactura...coisas que o obrigavam a ver o seu amo de novo e continuadamente e por ser prazeroso, esquecer quando o seu dia começara ou acabara, esquecer as dores nas espaldas ou as dificuldades no respirar. Não conhecia a obrigação.

A este escravo permitiram-lhe sonhar.
A este escravo permitiram-lhe usar as duas mãos e o coração e o fígado e as vísceras todas para trabalhar - estava cheio de um amor histórico vindo lá do século V, onde só havia riachos e relva onde queria repousar.
A este escravo foi dada a liberdade de correr no tempo, sempre, cabeça e coração no seu amo, no trilho, amealhando coisinhas que mais tarde podiam figurar no mesmo mapa imaginado lá atrás.
A este escravo foi dado o direito de não ser escravo, por um amor maior, uma vontade maior, umas mãos maiores que o libertaram.

Este escravo tem o latifúndio no peito. Ao pé da boca... um espaço amplo e grandiosíssimo onde todos estes trabalhos são obra da mão do seu amo, que arrenda e protege, que vigia e cuida, que defende... e como Amo, Ama.

Sandra Filipe

                                                                              



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