Outra educação

Não é o riacho azul que corre à tua frente uma tradução do russo?
Não são os meus olhos maiores que o amor?
Não é isto história, e nós um par de ruínas?
Kenneth Koch

Uma bilha cheia até metade de água,
a colher de café torta e um garfo,
enferrujados entre pés de erva-cidreira
e sulcos de mel – alguma coisa
nesta frágil ordem nos faz achar-lhe
um sentido, pôr na boca uma sombra
por mais passageira que seja.

Assim, enquanto as flores sacodem
o perfume na humidade salgada do ar,
à escada de ferro que sobe espiralando
p’rà mansarda, vem mijar um cão
desorientado, e uns degraus mais acima
dorme de olho aberto um gato zarolho.
Estou entre eles e os pêssegos e cigarros
na mesa de pedra, imagens meio inconscientes,
devorando páginas e páginas do caderno.

A poesia é o menos. Serve
se der com o ritmo e souber guiar
essas nuvens ralas, os rebanhos do céu,
suster o barulhinho intermitente
desta chuva de Agosto nos vidros,
o vento gemendo de gozo e a respiração
funda do mar. Isso e a ronda
noctívaga dos cagarros, o cerco da sua
risada coroando as nossas cabeças.

Queria era falar-te destas casas
com os joelhos dentro de água, a doçura
vagarosa do seu desmoronamento e como
é fácil escutar o sangue aqui. O que sublinha
entre estes nomes que repetimos até
perderem o sabor.
Ponta dos Rosais, Pico da Esperança, Fajã
das Almas, Fajã do Ouvidor, Poça Simão Dias…
Labirínticos e pedregosos, a vertigem
encantada destes lugares é toda uma educação.

Esta gente leda que nos espreita
mansamente à entrada dos cortiços
embelecidos pelo sopro de luz
ganhando cada linha exterior antes
de coalhar no interior. É difícil
ler a distância que pesa no que lhes resta
do olhar ou os gestos com que enxotam
os dias e as moscas.

Gosto muito e sem razão
da rapariga que nos serve num dos poucos
cafés da ilha. A blusa enodoada e doce,
aberta, uma ternura sem jeito e,
por isso, rara. O namorado zela por trás
do balcão. Sussurra-lhe instruções. Os dois
provocam-se, magoam-se – é jogo.
E foi um esboço eterno como este
aquele que deixámos a meio.

De propósito ou não,
no dia em que foste deixaste acesa a luz
do teu lado da cama. Nunca mais
a apaguei. Depois veio o tempo
em que do teu corpo fiz um país infindo
para embebedar-me e perder a pele
todas as noites, mais fundo de cada vez.
Ficar perto desses que raspam o silêncio
com os ossos. Sentir tudo, ver brilhar
as nossas cicatrizes, frescas todas as manhãs.

Defendíamos o nosso inferno.

Quem por esses dias também pouco
tirava do sono era deus. Via-o escapar-se,
madrugada ainda, da mesma pensão barata,
o olhar comido pelo vazio,
triste como nós. E a única consolação
que sempre tivemos era essa: fazíamos
um número do caraças.


Excepção feita a um ou outro pormenor,
esqueci-te. Ficou um ruído sufocado
que mói, mas menos. Às vezes
um cheiro gosta de alguma coisa, puxa
a recordação do teu, outras
acontece-me ler o teu nome por acaso,
e as suas sílabas absurdas, ainda molhadas,
despedaçam-me a boca.

Já não me queixo tanto. Em Lisboa
há um jardim onde me levo,
tem umas estátuas, meio despidas,
uma delas dói-me mais. Gosto de apanhar
a erva que lhe cresce nas margens,
atento àquela boca aberta em redor
de um grito que mais ninguém ouve
senão eu. Mel de uma boca
de sombra onde os dias ganharam
o gosto de esperar uma frase. Eu escrevo.
Quer dizer que abro cortes na ponta
dos dedos, mergulho-os como isco
no escuro, e aguardo.


Diogo Vaz Pinto
S. Jorge, Agosto de 2010

Sem comentários:

Enviar um comentário