CLARA/ CLARICE


Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.


Clarice Lispector

PERTENCER (trecho)




Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.


Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.


Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.


Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.


Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.


Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.


Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.


No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.


A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.




Clarice Lispector, in "A Descoberta do Mundo" , Rio de Janeiro,1999


Dá-me a tua mão


Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.


Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.


Clarice Lispector

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.

E bastava. Bastava respirar
a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

(Joaquim Pessoa)



A vida é chorar e rir a vida inteira. Aproveitar os momentos de tranquilidade e brincar um pouco.
A vida é um sopro.

Oscar Niemeyer



Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
(O soneto que só errado ficou certo)


Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.


Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão-
mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.


Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.


Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva


José Gomes Ferreira
(SIGO A EVOLUÇÃO NATURAL DAS COISAS)





Sigo a evolução natural das coisas.
A vida e a morte. Escondo alegrias
como o coração das árvores
no coração dos dias.


Cumpro o meu destino como qualquer fonte
e os meus passos são os de qualquer bicho.
Estou preso ao teu sangue
por lei natural, não por capricho.

Albano Martins, in «Vocação do Silêncio»
1930
Lugares mal situados


Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem


Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas


Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas


Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar


Daniel Faria

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola…em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.Mas brilha.
Não na distância. Aqui.
No meio de nós.
Brilha.


Jorge de Sena, Fidelidade




(SE ALARGAS OS BRAÇOS...)


Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
a mão transparente, e atrás,
nas embocaduras da noite,
o mundo completo treme como uma árvore
luzindo
com a respiração. E ofereces,
das unhas à garganta
talhada, a deslumbrante queimadura do sono.
- Em teu próprio torvelhinho se afundam
as coisas. Porque és um vergão raiando entre
esses braços
que irrompem da minha morte se durmo, da loucura
se a veia
violenta que me atravessa a cabeça se torna
ígnea como
um rio abrupto num mapa. Quando as salas
negras fotogáfricas
imprimem a sensível trama das estações
com as paisagens por cima. E
jorras
desde as costas dos espelhos, seu coração
arrancado pelos dedos todos de que se escreve
o movimento inteiro.
Nunca digas o meu nome se esse nome
não for o do medo. Ou se rapidamente o lume se não repartir
nas formas
lavradas como chamas à tua volta. Os animais
que essa labareda ilumina
na boca. Desde a obscuridade
de tudo que tudo
é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.
E da fronte aos quadris em tuas linhas, és
cega, fechada.
A minha força é a desordem. Reluzes
na têm pera enxuta - queima-te.
O ouro desloca a tua cara. Um nervo
atravessa as frementes, delicadas massas
das imagens:
como uma ferida límpida desde a nascença pela carne
fora. És alta em mim por essa
cicatriz que se abre ao dormir e quando
se acorda fica aberta.



Herberto Helder



(terceto de Vasco Graça Moura)




Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.
Dá aos outros a tua mão a guardar.
Não te deites sobre as muralhas.
Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.
Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.
Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia
Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.
Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?
Não prepares as palavras que gritas.
Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.
Faz um leito de afagos aos teus afagos.
Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.
Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.
Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.
Não bebas água.
Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.
Fala consoante a loucura que te seduziu.
Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.
O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.
Mente ao morder o arminho dos teus juízes.
Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.
Ata as pernas infiéis.
Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.
Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.
Acende as perspectivas da fadiga.
Vende com que comer, compra com que morrer de fome.
Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.
Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.
A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.
Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.
Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.
Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.
Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.
Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.
Deita-te, levanta-te e agora deita-te.
Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.
Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.
Regula a tua marcha pela das tempestades.
Nunca mates uma ave da noite.
Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.
Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.
Opera milagres para os negares.
Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.
Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.
Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.
Não escolhas o tempo de recomeçar.
Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.
Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.
Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.
Escreve o imperecível na areia.
Corrige os teus pais.
Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.
Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.
Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.
Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.
As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.
Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.
Observa a luz nos espelhos dos cegos.
Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.
Nunca esperes por ti.
Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.
Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.
Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.
Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.
Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.
A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.
Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.
Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.
Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.
Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.
Só te fitas com um olho, fecha o outro.
Não anules os raios vermelhos do Sol.
Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.
Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.
Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.


André Breton e Paul Éluard



SOTTO VOCE


É possível que eu esqueça a liquidez da lua
o sono dessa rua às três da madrugada
a longa caminhada orquestrada pela chuva
a sombra de uma luva em cima de uma vaga


É possível que eu esqueça o dia em que nasceste
Em que depois da luva apareceram as mãos
É possível que eu esqueça Ou me seja indiferente


É possível que sim É preciso que não


David Mourão-Ferreira
in Do Tempo ao Coração [1962-1966]

(para a Clara por causa da nossa conversa de hoje e também pelas constipações)
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Cecília Meireles



Tocamo-nos um ao outro, e como? Por golpes de asa, mesmo à distância sentimos a presença do outro.

Um poeta vive só, mas de vez em quando surge quem o transporta ao encontro de quem o transportou.



Rainer Maria Rilke (Maio,1926)

in Rilke / Pasternak / Tsvétaïeva - Correspondência a Três
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006

Do medo

Parecemos estar hoje animados quase exclusivamente pelo medo. Receamos até aquilo que é bom, aquilo que é saudável, aquilo que é alegre. E o que é o herói? Antes de mais, alguém que venceu os seus medos. É possível ser-se herói em qualquer campo; nunca deixamos de reconhecer um herói quando este aparece. A sua virtude singular é o facto de ele ser um só com a vida, um só consigo próprio. Tendo deixado de duvidar e de interrogar, acelera o curso e o ritmo da vida. O cobarde, par contre, procura deter o fluxo da vida. E claro que não detém nada, a menos que se detenha a si próprio. A vida continua sempre a avançar, quer nos portemos como cobardes, quer nos portemos como heróis. A vida não impõe outra disciplina - se ao menos o soubéssemos compreender! - para além de a aceitarmos tal como é. Tudo aquilo a que fechamos os olhos, tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, acaba por contribuir para nos derrotar. O que nos parece sórdido, doloroso, mau, poderá tornar-se numa fonte de beleza, alegria e força, se o enfrentarmos com largueza de espírito. Todos os momentos são momentos de ouro para os que têm a capacidade de os ver como tais. A vida é agora, são todos os momentos, mesmo que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa ao serviço da vida.

Henry Miller