(para o Vasco à guisa de uma conversa)



Olha, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro
passam a ser menos... Uma existência excessiva
para mim jorra, no coração.

Rainer Marie Rilke , " A Nona Elegia"
in As Elegias de Duíno


And I don’t believe in this materialism, in this consumer society, in this capitalism, in this outrageous horror that happens... takes place here…. I really do believe in something, and I call it “a day will come.” And one day it will come. Well, probably it won’t come, since they’ve always destroyed it for us…. It won’t come, and I believe in it anyway. Because if I can’t believe in it anymore then I can’t write anymore either.

Ingeborg Bachmann (June 1973)



As Horas

Damos festas, abandonamos as nossas famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis.
Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.

Michael Cunningham, in "As Horas"




Se miran, se presienten, se desean,
se acarician, se besan, se desnudan,
se respiran, se acuestan, se olfatean,
se penetran, se chupan, se demudan,
se adormecen, despiertan, se iluminan,
se codician, se palpan, se fascinan,
se mastican, se gustan, se babean,
se confunden, se acoplan, se disgregan,
se aletargan, fallecen, se reintegran,
se distienden, se enarcan, se menean,
se retuercen, se estiran, se caldean,
se estrangunlan, se aprietan, se estremecen,
se tantean, se juntan, desfallecen,
se repelen, se enervan, se apetecen,
se acometen, se enlazan, se entrechocan,
se agazapan, se apresan, se dislocan,
se perforan, se incrustan, se acribillan,
se remachan, se injertan, se atornillan,
se desmayan, reviven, resplandecen,
se contemplan, se inflaman, se enloquecen,
se derriten, se sueldan, se calcinan,
se desgarran, se muerden, se asesinan,
resucitan, se buscan, se refriegan,
se rehúyen, se evaden y se entregan.

Oliverio Girondo





A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam. O significado é essa espécie de mapa das interpretações que se cruzam como cicatrizes de sucessivas pancadas. Os nossos sentimentos. A intensidade do sentir é intolerável. Do sentir ao sentido do sentido ao significado:

o que resta é impacto que substitui impacto - eis a invenção.


Ana Hatherly, in 'A Cidade das Palavras'






É Possível Estarmos Todos Errados?

É possível que não se tenha visto, conhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milénios para olhar, reflectir e anotar e que se tenha deixado passar os milénios como uma pausa escolar, durante a qual se come fatias de pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que, apesar das investigações e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na superfície da vida?
É possível que até se tenha coberto essa superfície - que, apesar de tudo, seria qualquer coisa - com um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se assemelhe aos móveis da sala durante as férias de Verão?
Sim, é possível.
É possível que toda a História Universal tenha sido mal-entendida? É possível que o passado seja falso, precisamente porque sempre se falou das suas multidões, como se dissertasse sobre uma aglomeração de pessoas, em vez de falar de uma única, em torno da qual elas estavam, porque se tratava de um desconhecido que morreu?
Sim, é possível.
É possível que se tenha julgado ser preciso recuperar o que aconteceu antes de se ter nascido? É possível que se tivesse de lembrar a cada um que ele, de facto é proveniente de todos os antecessores, tendo ele disso conhecimento e não devendo dar ouvidos a outros que soubessem outras coisas?
Sim, é possível.
É possível que todas estas pessoas conheçam em pormenor um passado que nunca houve? É possível que todas as realidades nada sejam para elas; que a sua vida decorra, desligada de tudo, como um relógio numa sala vazia?
Sim, é possível
É possível que nada se saiba das raparigas que, no entanto, vivem? É possível que se diga «as mulheres», «as crianças», «os rapazes» e não se faça a mínima ideia (apesar de toda a cultura não se faça a mínima ideia) de que há muito que estas palavras não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?
Sim, é possível.É possível que haja gente que diga «Deus» e julgue que se trate de algo comum a todos? - E veja-se apenas dois rapazinhos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho compra outro tal qual no mesmo dia. E uma semana depois mostram um ao outro os dois canivetes, e acontece que eles só muito de longe se parecem - tão diferentemente evoluíram em mãos diferentes. (Ora, diz a mãe de um deles a esse respeito: vocês têm sempre por força de desgastar logo tudo!). Ah, pois: é possível acreditar que se possa ter um Deus sem se recorrer a Ele?
Sim, é possível.
Porém, se tudo isto é possível, se tem mesmo só uma aparência de possibilidade - então, por tudo o que há no mundo, é preciso que aconteça alguma coisa.
O primeiro indivíduo, o que teve estes pensamentos inquietantes, deve começar a fazer alguma coisa do que se perdeu; mesmo que seja um qualquer, certamente o menos indicado: mais nenhum há que o possa fazer.


Rainer Maria Rilke, in 'As Anotações de Malte Laurids Brigge'

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?

Alexandre O´Neill




AH, QUE TU ESCAPES NO INSTANTE
EM QUE JÁ HAVIAS ALCANÇADO A TUA MELHOR DEFINIÇÃO

Lezama Lima


SOPRA UM VENTO TERRÍVEL.
É APENAS UM PEQUENO BURACO NO MEU PEITO.


Henri Michaux














Que no puedo vivir porque te extraño
y no puedo morir porque te quiero.

Jorge Luis Borges




Nunca mais depois e nunca antes assim —
Verdade é: só me ficaram as grandes aves
Que ao anoitecer têm fome no céu escuro.


Bertold Brecht, in 'Do Pobre B.B.'

OUTONO

QUASE SE VÊ DAQUI, O VERÃO.

Eugénio de Andrade



" a primeira tempestade foi o primeiro dia de amor
milhões de flores de milhões de cores
subindo e descendo velhas escadas
em milhões de camas como a tua.
Os automóveis passando as mãos nas tuas pernas
perto a abóbada há milhões de séculos escondida
o poeta pendurado com um alfinete
na fachada da casa
nós lado a lado deitados
procurando-nos..."

(...)
e aí ficar a contar pelos dedos eternamente
a tua estatura
a cor da tua presença
o que dizem as pestanas com o seu curso completo de arte dramática

o que ouve a tua boca
o que dizem os teus ouvidos entre infinitas extensões de areia
as tuas faces
o gesto de resolveres dar-me a tua mão
de afastares os véus para sair um pouco da luz eterna
de abrires o teu peito
no capítulo que conduz para além do sexo
e onde um beijo em tamanho natural existe
antes da parede onde alguém há milhões de anos escreveu
junto da grande escada
apenas a palavra "AMOR"
e isso foi o começo deste caminho onde nos encontrámos
o primeiro passo irresistível da estátua
com a sua armadura de plumas e cornos
para combater o eco que vem do outro lado do horizonte
Meu amor tão distante
somos nós a estrada por onde passa triunfal
o carro triunfal
em que radiosos seguimos lado a lado
mais eternos e exaustos que o último homem
com uma só coroa de amor e de ódio unindo as nossas cabeças
que cobre a imagem de um Deus
em três pessoas
- animal, vegetal e mineral.

(Cruzeiro Seixas, por Mário Cesariny)
férias
Somos pó

Esta nossa chamada vida, não é mais do que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo: De utero translatus ad tumulum: Mas ou o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo; como é círculo de pó a pó sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele, tanto mais se chega para ele: e quem, quanto mais se aparta, mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo e não outro é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele: o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz; e como esta roda que anda e desanda juntamente, sempre nos vai moendo, sempre somos pó.
Padre António Vieira, in "Sermões"

Húmus




Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem...Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que profundidade. Às vezes convoco-os, outras são eles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silêncio mais profundo ainda, conto ouvi-los a todos.


Raul Brandão, in 'Húmus'


(à cause de...)


(...) enquanto que as figuras veneradas e queridas que rodearam a minha infância desaparecem pouco a pouco, e tornam a casa maior e mais vazia
(...) e agora ia morrer sozinho, não tendo sequer sabido construir uma família. Nos seus olhos - que eram os meus, apagados pelos anos -, - nada tinha guardado de todo esse sol que devia ter visto durante a vida; tinha uma expressão terna, desolada e maldita.

Pierre Loti (tradução Miguel Martins)



Tem sido um trabalho doloroso, uma luta. Mas - creio - estou finalmente próximo de não ter coração. Falta-me só largar o último pedaço. O problema é que isso não basta. A alma sobrevive-lhe. É outra coisa, embora tenham partes em comum. Largá-la será o trabalho seguinte, mas já estou muito cansado e não sei se ainda valerá a pena empreender o esforço.
(...)
Em vez de tudo isso, um seguro de saúde e um charuto quinzenal com um sorriso seco e vazio, para apimentar.

Vêdes? É árduo o caminho que tenho pela frente. E, primeiro, ainda me falta ver-me livre do derradeiro pedacinho de coração. Que é onde moras tu, para quem escrevo, um par de mortos, uma fotografia da infância quase queimada por sóis artificiais, e a querida imagem do mar, a que perdi o direito num dia sem nome ou num cigarro de milhares.


Israel meets Rua do Capelão






Rua do Capelão
Amália Rodrigues


Ó rua do Capelão
Juncada de rosmaninho
Se o meu amor vier cedinho
Eu beijo as pedras do chão
Que ele pisar no caminho.

Há um degrau no meu leito,
Que é feito pra tisomente
Amor, mas sobe com jeito
Se o meu coração te sente
Fica-me aos saltos no peito.

Tenho o destino marcado
Desde a hora em que te vi
Ó meu cigano adorado
Viver abraçada ao fado
Morrer abraçada a ti.



Visita-me Enquanto não Envelheço

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo
e surpreende-me com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão
a lava do desejo subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne
a paixão derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te


Al Berto, in 'Salsugem'

A beleza de todas as coisas

Reparava mais uma vez na grande beleza de todas as coisas; porém assaltava-o claramente, nesse desejo em ebulição, o doloroso pressentimento de um cativeiro; inquietante sensação de que todo quanto julgamos atingir nos atinge a nós; a tenebrosa suspeita de que as afirmações falsas, feitas no ar, sem qualquer espécie de importância pessoal, acordarão sempre neste mundo um eco mais poderoso do que as mais verdadeiras e as mais singulares. Esta beleza (dizia então consigo), perfeita! Mas tratar-se-á realmente da minha beleza? E a verdade que me ensinam será a minha verdade? Os objectos, as vozes, a realidade, todas essas coisas sedutoras que nos atoem e nos guiam, que perseguimos e sobre as quais nos precipitamos... será isso no entanto a realidade autêntica, ou apenas se tratará de um sopro imponderável pairando acima da realidade proposta? O que mais excita a desconfiança) são as divisões e as formas convencionais da vida: a história, sempre a mesma, as coisas, já prefiguradas pelas gerações precedentes, a linguagem convencional, não apenas os nossos lábios, mas também as nossas sensações e sentimentos. Ulrich detivera-se diante de uma igreja. Meu Deus! se acaso uma gigantesca matrona ali estivesse sentada à sombra, com uma enorme barriga cheia de refegos, encostada às paredes das casas e muito lá em cima, o pôr do Sol lhe iluminasse o rosto cheio de rugas, de borbulhas e de verrugas... não teria ele exclamado na mesma? Meu Deus! que belo! Ninguém se quer furtar ao facto de que viemos ao mundo com o dever de admirar isto; mas, como acabámos de dizer, não seria impossível igualmente acharmos belas, numa respeitável matrona, as formas amplas, suavemente descaídas, e a filigrana das soas rugas; só que é muito mais simples dizer-se que ela é velha. Esta transição do momento em que achamos as coisas do mundo envelhecidas para aquele em que as consideramos belas é mais ou menos semelhante à que nos conduz desde as concepções dos jovens até à moral mais elevada do adulto, a qual continua a ser um ridículo bê-á-bá até ao dia em que, bruscamente, a fazemos nossa.

Robert Musil, in O Homem sem Qualidades

Un hombre del pueblo de Neguá, en la costa de Colombia, pudo subir al cielo. A la vuelta, contó. Dijo que había contemplado, desde allá arriba, la vida humana. Y dijo que somos un mar de fueguitos.- El mundo es eso - reveló- un montón de gente, un mar de fueguitos. Cada persona brilla con la luz propia entre todas las demás. No hay dos fuegos iguales. Hay gente de fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco, que llena el aire de chispas; algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman, pero otros arden la vida con tantas ganas que no se puede mirarlos sin parpadear, y quien se acerca se enciende.


Eduardo Galeano, El libro de los abrazos


(roubado aqui por necessidade - obrigada)


QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA

Quero uma vida em forma de espinha
Numa travessa azul
Quero uma vida em forma de objecto
Ao fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas mãos
Em forma de pão verde ou de bilha
Em forma de chanata mole
Em forma de chá chá chá
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
de penteado selvagem ou louca plumagem
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a, mas isso ainda não me basta.
Nunca estou satisfeito.

Cantilenas em geleia,
Boris Vian




(...)
Quando se tem o álibi
De ter nascido ávido
E convivido inválido
Mesmo sem ter havido


Djavan, Álibi





Olha hoje o teu clima está magnífico
olha vamos sair desta cidade
onde o teu clima é sempre para dividir por cinco
vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos
vamos ser os heróis duma tragédia química
e convidamos o Azul por uma questão de princípio

Mário Cesariny de Vasconcelos







nos teus lábios o sangue vibra muito de muito dentro de nós

e expande o doce mundo que o contém quente e para mim

és sempre a estrela fixa e descida, a iluminura retida

o fluído que as idades antigas transpiram hoje vertida

vestes molhadamente o que te capto solícito e bebo

e a tua pele é uma viagem por ninguém nunca antes concebida

num dedo


Piscina VIII, Dórdio Guimarães







(...)

Por isso, para que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a minha revolta, o meu desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho e que ninguém se aproxime para aquém dos mil passos


EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU
MEU AMOR

minha aranha mágica agarrada ao meu peito
cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século

agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo


MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar

DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO



António José Forte