States of Mind I: The Farewells
Umberto Boccioni (Italian, 1882-1916)
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio. De paixão.

Herberto Helder


A sorte não existe.Aquilo a que chamais sorte é o cuidado com os pormenores.
Winston Churchill

Deus está nos detalhes
Mies van der Rohe
A rede ou o que Sevilha não conhece

Há uma lembrança para o corpo,
a tua: é a de um abraço de rede,
esse abraço de corpo inteiro
de qualquer rede do Nordeste,
da rede que tua Andaluzia,
que é tão da sesta, não conhece,
e mais que abraço, é o abraçar
de tudo o que pode estar nele;
é o abraço sem fora e sem dentro,
é como vestir outra pele
que ele possui e que o possui,
uma rede nas veias, febre.

João Cabral de Melo Neto, in Agrestes

ESTA NOITE UM GRANDE AMOR ATORMENTA-ME.
blaise cendrars






Que o meu coração ardia, como o templo de Éfeso ou a Praça Vermelha de Moscovo
ao pôr do sol.
Blaise Cendrars



cá dentro inquietação...*


* Inquietação, José Mário Branco



Aquele mover de olhos excelente,
aquele vivo espírito inflamadodo
cristalino rosto transparente;
aquele gesto imoto e repousado,
que, estando na alma propriamente escrito,
não pode ser em verso trasladado;
aquele parecer, que é infinito
para se compreender de engenho humano,
o qual ofendo enquanto tenho dito,
me inflama o coração dum doce engano.
me enleva e engrandece a fantasia,
que não vi maior glória que meu dano.
Oh, bem-aventurado seja o dia
em que tomei tão doce pensamento,
que de todos os outros me desvia!
E bem-aventurado o sofrimento
que soube ser capaz de tanta pena,
vendo que o foi da causa o entendimento!
Luís de Camões


E ao anoitecer
e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
Al berto


(sobre José Sebag)

Tentei fugir da mancha mais escura

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.
David Mourão-Ferreira

AQUI




todos os negócios se fazem tendo como moeda de troca berlindes de ágata e selos.
(jean cocteau)


Uma época em que tudo é permitido sempre tornou infelizes aqueles que nela viveram. Disciplina, abstinência, cortesia, música, moral, poesia, forma, proibição, tudo isso tem como sentido último conferir à vida uma forma bem delimitada e determinada. Não existe felicidade desregrada. Não existe grande felicidade sem grandes tabus. Até no mundo dos negócios não podemos correr atrás de qualquer vantagem, porque nos arriscamos a não chegar a lugar nenhum. O limite é o segredo dos fenómenos, o mistério da força, da felicidade, da fé e da nossa missão, que é a de nos afirmarmos como ínfimos seres humanos num universo.
Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'


nas suas margens, branco como o dia:

o tempo desta imagem.

que cresce como o teu olhar quer.

paul celan




Ama-se com amor aqueles que não se podem amar de outro modo

Natalie Barney

"BMLT"
Por isso sou semente, semente antes de tudo, do que nunca virá e vai de mão em mão. E perco-me na sede dos que nunca existiram e encontro-me comigo quando menos me apraz. Se havia uma insolência lavrada no caminho, como bem podeis ver, o certo é que não há. Mas não há humildade, muito menos modéstia. Mas não há a entrega que não há em ninguém. Há somente, a demência e a imensa fadiga, há, apenas, o asco com que digo amanhã.
********************************************************
Há um tempo incorrecto em tudo isto. Há um deserto enorme na paisagem. E hás tu a dizer caracolinhos louros na foto da infância. “Que o mar não te leve” e eu ali. Há o mar, e esse é todo o tempo. E hei eu, ‘inda gordo como lume, a respirar-te à luz de Leroy Jenkins. Há os dentes perdidos no caminho. A eterna deriva encapuçada. Há as linhas perdidas letra a letra e a saliva que nego (por usura?). Talvez um dia perca o meu olhar. Mas por ora, sou Miguel, o por enquanto.


(No dia 17 de Maio, Domingo, pelas 17h - HOJE - espectáculo "BMLT", com texto Miguel Martins, leitura por Changuito, música e pintura ao vivo, por Abdul Moimême e A. Pinto Ribeiro, respectivamente. É no Teatro Chimico (foto) do Museu de História Natural, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa. A entrada é gratuita. )


Poema

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada
alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios
alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte


Não me venham com teorias, estou farto.
Acontecimentos, seres, objectos, lugares.
A coluna vertebral disto tudo.
A posição vertical - eis o que me parece justo.
Se se anda com a cabeça e se põe o chapéu nos pés, não é a coluna vertebral que tem culpa.
O erro pode estar em andar com os pés e pôr o chapéu na cabeça.
De qualquer maneira, é magnífico ver uma flor ter delicadeza debaixo da terra.
Herberto Helder

Mas eu, que há anos me contenho
em estudar as ciências do teu nome,
comecei por pensar uma luz muito breve,
e depois descobri uma luz enorme,
(...)
Emanuel Félix




Ter na mão a ponta do fio tenso que segura o sonho - e largá-la para que o sonho voe mais alto.
Rui Caeiro



SÓ TU SABES SORRIR NA VERTICAL


Jorge Sousa Braga


CONTRALUZ

O coração ficou escondido no escuro e duro como a pedra filosofal.

*

Era Primavera e as árvores voavam para os seus pássaros.

*

Tantas vezes o cântaro partido vai à fonte até que esta seca.

*

Quatro estações do ano e nenhuma quinta para se decidir por uma delas.

*

O abraço dela durou tanto que o amor desesperou deles.

*

Tinha chegado o dia do juízo e, para se procurar a maior das infâmias, a cruz foi pregada em Cristo.

*

Enterra a flor e põe o homem sobre esta campa.

*

A hora saltou do relógio, pôs-se à frente dele e ordenou-lhe que andasse certo.

Paul Celan, no jornal Die Tat, Zurique,1949

Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos...
No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega.
Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.

Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?

Alfonsina Storni


The Laughing Heart

your life is your life.
don’t let it be clubbed into dank submission.
be on the watch.
there are ways out.
there is a light somewhere.
it may not be much light but
it beats the darkness.
be on the watch.
the gods will offer you chances.
know them.
take them.
you can’t beat death but
you can beat death in life, sometimes.
and the more often you learn to do it,
the more light there will be.
your life is your life.
know it while you have it.
you are marvelous.
the gods wait to delight in you.


Charles Bukowski (1920-1994)
O seu santo nome
Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissãode espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavraque é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Carlos Drummond de Andrade



O MEU CORAÇÃO BATE AO RITMO DA ESTRELA MAIS LONGÍNQUA.

nâzim hikmet


Ne Me Quitte Pas

Ne me quitte pas, il faut oublier
Tout peut s’oublier qui s’enfuit déjà
Oublier le temps des malentendus
Et le temps perdu à savoir comment
Oublier ces heures qui tuaient parfois
A coups de pourquoi le coeur du bonheur
Ne me quitte pas, ne me quitte pas,ne me quitte pas

Moi, je t’offrirai des perles de pluie
Venues de pays où il ne pleut pas
Je creuserai la terre, jusqu’ après ma mort
Pour couvrir ton corps d’or et de lumière
Je ferai un domaine où l’amour sera roi
Où l’amour sera loi, où tu seras reine
Ne me quitte pas, ne me quitte pas,ne me quitte pas

Ne me quitte pas, je t’inventerai
Des mots insensés que tu comprendras
Je te parlerai de ces amants là
Qui ont vu deux fois leurs coeurs s’embraser
Je te raconterai l’histoire de ce roi
Mort de n’avoir pas pu te rencontrer
Ne me quitte pas, ne me quitte pas,ne me quitte pas

On a vu souvent rejaillir le feu
De l’ancien volcanqu’on croyait trop vieux
Il est parait-il des terres brûlées
Donnant plus de blé qu’un meilleur avril
Et quand vient le soir pour qu’un ciel flamboie
Le rouge et le noir ne s’épousent-ils pas?
Ne me quitte pas, ne me quitte pas,ne me quitte pas

Ne me quitte pas je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler, je me cacherai là
A te regarder danser et sourire
Et à t’écouter chanter et puis rire
Laisse-moi devenir l’ombre de ton ombre
L’ombre de ta main, l’ombre de ton chien

Ne me quitte pas, ne me quitte pas,ne me quitte pas
Jacques Brel, 1959
mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

al berto, in horto do incêndio
Canção Grata

Por tudo o que me deste:
- Inquietação, cuidado,
( Um pouco de ternura ? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão,
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz , agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

Carlos Queiroz




O que está só volta-se para a parede à noite, para te falar. Ele sabe o que te animava.

Vem partilhar o dia. Observou com os teus olhos. Ouviu com os teus ouvidos.

Tem sempre coisas para ti.


Henri Michaux